domingo, 26 de setembro de 2010

O poder das armas




Uma coluna de tanques norte-americanos no deserto, na fronteira do Iraque
      “Nas assembléias parlamentares, devemos ter cuidado com o crescimento da influência, tanto clara quanto oculta, do complexo militar-industrial. Há um risco de que cresça desastrosamente o poder nas mãos de pessoas erradas, e esse risco continuará a existir no futuro. Não devemos permitir que o peso dessa mistura de poderes ponha em perigo nossas liberdades ou os processos democráticos. E não devemos achar nada óbvio: apenas cidadãos vigilantes e bem informados podem impor um equilíbrio adequado entre a enorme máquina militar-industrial e nossos métodos e objetivos pacíficos, a fim de que a segurança e a liberdade possam prosperar juntas.” Estamos em 17 de janeiro de 1961 quando Dwight David Eisenhower, 34º presidente dos Estados Unidos, já no final de seu mandato, pronuncia esse discurso. É a primeira vez que se utiliza a expressão “complexo militar-industrial” para indicar um agregado de interesses capaz de influenciar a política interna e externa dos Estados Unidos da América. Já se passaram décadas desde então, mas essas palavras parecem mais atuais do que nunca. Afeganistão, Iraque e, no futuro, como se teme, o Irã... Há quem se pergunte se boa parte da política americana do uso da força não se deve justamente ao peso, e aos interesses, do complexo militar-industrial. Quanto mais guerras, maiores negócios. Enfim, para usar as palavras do italiano Alberto Sordi, enquanto há guerra, há esperança. Pedimos explicações e dados sobre isso a Maurizio Simoncelli, ex-docente de Geopolítica dos Conflitos da Universidade Roma Três e membro da diretoria do Arquivo de Desarmamento, um instituto internacional de pesquisas que estuda temas como o controle dos armamentos, a transformação de indústrias e a prevenção aos conflitos. É ele que nos chama a atenção para o discurso de Eisenhower, para explicar como o medo do poder de influência do complexo militar-industrial dos EUA não nasceu no ambiente antiamericano, muito pelo contrário; nem no ambiente pacifista, pois o presidente tinha sido anteriormente general do exército, condição em que, como se pode presumir, teve a oportunidade de constatar pessoalmente esse perigo... 
            O que o senhor entende por complexo militar-industrial dos EUA? 
      MAURIZIO SIMONCELLI: Uma mistura de indústria, cúpula das forças armadas e classe política. Na prática, observamos um processo em que indústrias do setor militar estão cada vez mais integradas ao Pentágono. E não apenas por meio de simples oficiais de ligação. Normalmente, as empresas de armas, no sentido mais amplo do termo, têm dentro delas escritórios permanentes do Pentágono. São empresas privadas nas quais trabalham centenas de funcionários que, em vez de serem empregados do empresário, são empregados do Ministério da Defesa. Além disso, essa intersecção se revela no intenso intercâmbio de funções e posições: altas patentes militares, quando se aposentam, assumem um lugar nos conselhos de administração de empresas do setor bélico, e empresários desse ramo acabam nas cadeiras do Congresso... Não é pequena a influência desse lobby não apenas sobre as opções econômicas do país, mas também sobre as prioridades financeiras e a própria política externa dos Estados Unidos. O que é ainda mais preocupante é que isso acontece na potência mais armada do mundo. 
      O fato de as bases militares estarem distribuídas por todos os colégios eleitorais influencia os políticos? 
      SIMONCELLI: As indústrias militares estão distribuídas por todo o território nacional, e cada deputado ou senador tem de levá-las em conta, tanto no momento da eleição quanto durante o mandato. Devemos nos lembrar, além disso, de que os militares – estamos falando de três milhões de homens e mulheres – representam 1,5% da população dos EUA: uma fatia de eleitorado não desprezível. 
      Quanto peso tem a indústria militar na economia americana? 
      SIMONCELLI: Segundo o Sipri (Stockholm International Peace Research Institute, o instituto de pesquisas mais respeitado em relação a essa temática), em 2006 os Estados Unidos gastaram 528,7 bilhões de dólares para a defesa, 46% do total mundial destinado para a mesma finalidade. Para se ter uma idéia de proporção, o segundo Estado a investir mais na defesa foi o Reino Unido, com 59 bilhões, seguido da França, com 53 bilhões, da China, com 49 bilhões, e da Rússia, com 34,7 bilhões. A despesa russa vem aumentando, mas estamos muito distantes do que ocorria durante a guerra fria; hoje só existe uma superpotência mundial... Nos últimos anos, houve um verdadeiro boom de despesas militares nos Estados Unidos: passamos dos 345 bilhões de dólares de 2001 para os 528,7 de 2006, com um aumento de cerca de 180 bilhões ao longo de cinco anos. Dinheiro, obviamente, embolsado pelas indústrias bélicas. Outro dado significativo que descreve bem o crescimento do setor é o das exportações. Em 2006, os EUA exportaram sistemas de armamento equivalentes a 7,929 bilhões de dólares (quase sempre aviões, navios, tanques, submarinos, etc., ao passo que o comércio de armas leves, que também é intenso, tem lucros bem menores). Das dez empresas líderes do setor, seis são norte-americanas; sete, se considerarmos as doze primeiras do ranking. Antigamente, as exportações dos Estados Unidos e da União Soviética se equivaliam; hoje, a Rússia exporta a mesma quantidade de armas, mas com um nível tecnológico inferior, e esses produtos se destinam a um mercado mais modesto, em geral do Terceiro Mundo. Os EUA destinam cerca de 3,04% de seu PIB (um número absoluto relevante) para o campo da defesa, diante de 5,06% destinado à educação e 6,06% à saúde. Outros países ocidentais, como o Reino Unido, a França, a Itália e o Canadá, destinam à defesa percentuais do PIB mais contidos (respectivamente, 2,4%, 2,5%, 2,1% e 1,02%). A mesma coisa acontece com a China (2,05%), ao passo que a Rússia voltou a se armar, ultrapassando o percentual norte-americano (4%). 
Dwight David Eisenhower
      As guerras no Iraque e no Afeganistão foram uma oportunidade de lucros para a indústria militar dos EUA? O senhor tem dados a esse respeito? 
      SIMONCELLI: Essas guerras permitiram aumentar o fornecimento não apenas ao exército nacional, mas também aos aliados, desde a Arábia Saudita até o Paquistão. Todas as empresas bélicas americanas participaram desse boom. No setor de veículos militares, vemos que, entre 2004 e 2005, o faturamento da Am General, da Armor Holdings e da Oshkosh Truck passou, respectivamente, de 690 milhões de dólares para 1,050 bilhão, de 610 para 1,190 bilhão e de 770 para 1,060 bilhão. No campo dos helicópteros, a L-3 Communications passou de 5,970 bilhões de dólares para 8,970. E a Northrop Grumman passou de 25,970 bilhões para 27,590 bilhões de dólares de faturamento. Um aumento extraordinário, se considerarmos que isso se deu num período de apenas doze meses. Na esfera civil, não se registram crescimentos tão repentinos. Além disso, há alguns anos, diversos serviços realizados anteriormente pelo exército foram privatizados: a administração dos quartéis, sua segurança, abastecimento, etc. A coisa chegou a um ponto em que até milícias particulares, os chamadoscontractors, foram investidas de funções militares. Toda uma indústria, até hoje inexistente, floresceu em torno do setor militar, que chega a faturar bilhões de dólares. 
      É verdade que o desenvolvimento tecnológico dos EUA se deve em larga medida à indústria militar, mais que às indústrias civis? 
      SIMONCELLI: Cerca de 30% dos cientistas e engenheiros que trabalham no setor de pesquisa e desenvolvimento científico e tecnológico estão ligados a indústrias de tipo militar. Segundo dados da National Science Foundation, 52,7% do faturamento que o Estado destina ao desenvolvimento científico, cerca de 46 bilhões de dólares, é destinado apenas ao setor militar. Um percentual muito superior ao de outros Estados ocidentais. Para se ter um termo de comparação, basta pensar que o Japão destina a esse setor 4,3%, e a Alemanha 7,1%... Vendo esses dados, podemos também dizer que o desenvolvimento tecnológico e científico americano está ligado em mão dupla ao setor bélico. Multíssimos produtos de uso civil nasceram antes com finalidade militar: basta pensar nos aparelhos de navegação por satélite, uma simplificação extrema dos sistemas de direcionamento dos Cruise; ou na própria Internet, que nasceu como “intranet” da defesa dos EUA. Observando esse modelo de desenvolvimento, Seymour Melman, o maior especialista norte-americano em economia militar, definiu a economia dos EUA como uma economia de guerra, mais precisamente uma economia de guerra permanente. 
      As guerras são uma grande oportunidade para testar novas armas, pois permitem um salto de qualidade em produtos que serão depois comercializados... 
      SIMONCELLI: É claro. As áreas de teste não são suficientes para experimentar os sistemas de armamento. Para verificar sua confiabilidade, eles precisam ser testados em situações extremas, ou seja, durante conflitos. Pensemos nas bombas inteligentes experimentadas em larga escala no primeiro conflito iraquiano, ou nos aviões teleguiados, na segunda operação no Iraque e no Afeganistão. E não é só isso. Algumas armas, por sua natureza, não podem ser testadas nas áreas de teste; é o caso, por exemplo, dos projéteis de urânio empobrecido: ainda hoje são pouco conhecidas as conseqüências para a saúde de civis e militares que se submetem a sua radioatividade. Para armas desse tipo, não se usam áreas de teste... 
      Há quem tenha observado o quanto o desenvolvimento industrial dos EUA está estreitamente ligado às guerras de que essa nação tomou parte... 
      SIMONCELLI: Realmente, existem dados nesse sentido: a crise de 1929 e dos anos seguintes termina com a Segunda Guerra Mundial. Logo depois do final da guerra, há um período de estagnação da economia dos EUA, que termina entre 1947 e 1948, com o início da guerra fria. Mas, com o ano de 1989 e o final da guerra fria, muda tudo. Para as indústrias bélicas, é um período de crise: algumas despedem em massa, outras fecham, mas, na maioria delas, observamos uma reestruturação, na qual ocorre a fusão de diversas empresas. Um processo de concentração que criou os atuais gigantes do setor. A retomada do setor militar só se daria em 2001... 
      Com o início da guerra contra o terrorismo... Portanto, a tese sai confirmada. 
      SIMONCELLI: Até certo ponto. Esse axioma entre guerra e desenvolvimento geral não é óbvio de modo algum. E isso porque as indústrias militares têm dinâmicas muito diferentes das civis. Em primeiro lugar, para que cresçam de maneira considerável deve haver alguma crise, um conflito. Os gráficos de faturamento de uma empresa militar não têm um andamento regular, como acontece, em geral, nas indústrias civis. Se observarmos um gráfico relativo ao andamento econômico de uma indústria bélica, veremos picos e quedas repentinos, ligados a momentos de crise ou de distensão. Uma instabilidade intrínseca, portanto. A isso, devemos somar outro elemento de desequilíbrio geral: os produtos desse setor não seguem nenhuma lógica de mercado. Se, na esfera civil, um produto tem de apresentar preços competitivos para ser vendido, no setor militar a necessidade de máxima seriedade e o emprego do produto em áreas de segurança nacional requerem total confiabilidade do produto, mesmo que isso o torne extremamente caro a quem o adquire, geralmente o Estado. É lógico que uma hipertrofia das despesas militares leva a um aumento da despesa pública, que é causa de desequilíbrio numa economia nacional. 
Um soldado bósnio caminha entre toneladas de munições destinadas à destruição, em Doboi, perto de Saraievo, em novembro de 2006
      Concordo, mas, no passado, as guerras serviram de motor à indústria civil. 
      SIMONCELLI: As enormes despesas militares garantem empregos e faturamentos positivos ao ramo industrial da defesa. Isso, de uma forma ou de outra, tem efeitos positivos sobre a economia nacional como um todo, mas as características tecnológicas cada vez mais sofisticadas dos vários sistemas de armamento já se refletem cada vez menos na esfera civil. Para dar um exemplo que se possa compreender facilmente, o caro caça-bombardeiro invisível Stealth tem características opostas às de um avião civil, que deve ser econômico e reconhecido com facilidade pela torre de controle. Tudo isso se insere num quadro em que diversos setores industriais dos EUA estão estagnados, e o déficit comercial – impulsionado pelo aumento do preço do petróleo e pela competitividade da China – pesam muito negativamente sobre a economia americana. Para dar uma idéia das dificuldades nas quais a economia dos EUA se debate, basta pensar que, como vemos pelos dados da Ocde, em 2004 a China exportou bens ICT (Information and Communication Technology) equivalentes a 180 bilhões de dólares, contra 149 bilhões de dólares dos Estados Unidos, que no ano anterior eram líderes do mercado mundial. A dificuldade da indústria dos EUA diante das importações do exterior é demonstrada também pela fraqueza do dólar, que se mantém baixo para favorecer as indústrias nacionais. 

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